domingo, 7 de setembro de 2014

Contos do escritor Érico Veríssimo



Chico


Chamava-se Chico. De quê? Ele mesmo não sabia…
– Gente pobre não tem nome… – costumava dizer.
Tinha sete anos. De dia vendia jornais, de noite apanhava bordoada do irmão mais velho, o Zico, que vivia embriagado.

A mãe havia muitos anos que estava atirada sobre um colchão velho, paralítica, cadavérica, tendo a todas as horas do dia, diante dos olhos baços e sem expressão, o mesmo quadro de miséria e desalento: as paredes sórdidas do quarto, donde pendiam molambos, o teto carcomido e cheio de teias de aranha, a janela sem batentes, eterna-mente escancarada, mostrando uma nesga de céu em que nas noites claras se vislumbrava, como uma esmola luminosa, a claridade fugidia de estrelas…

O pai – Chico mal se lembrava disto – morrera por um dia triste de inverno, de peste, e se fora, quase nu, dentro duma carroça velha que ia fazendo tóc-tóc-tóc-tóc. . ., aos solavancos, pela estrada barrenta e sinuosa que ia dar no cemitério.

Chico ouvia sempre dizer que havia lá em cima, no céu, um Deus muito bom e muito severo. que não queria que as crianças dissessem nomes feios nem desobedecessem aos mais velhos. Era um homem muito poderoso, que punha empenho em que todas as cousas na terra andassem direitas e bem feitas.
Surgia, então, na cabecinha do garoto um problema intrincado e insolúvel.

Chico via no mundo (mundo era a cidade em que ele, Chico, morava) gente feliz, rica, alegre; crianças que andavam bem vestidas, que tinham brinquedos surpreendentes e que comiam os doces mais saborosos desta vida. Via, ao mesmo tempo, de Outro lado, os infelizes, os desprotegidos da fortuna, os que rolam pão duro e andavam a ferir os pés descalços no pedregulho das ruas. E o pequeno não podia compreender a razão de tanta desigualdade de sorte no mundo. Como era que Deus, tão bom e tão justo, consentia em que existissem crianças felizes e protegidas, ao mesmo passo que existiam outras, desgraçadas e sós, que, pra ganhar alguns tostões, – magríssimos tostões –, tinham de andar vendendo jornais pelas ruas, à luz adustiva do sol?…

E Chico não compreendia… Não compreendia e ficava pensando, pensando…

Mas não se detinha por muito tempo em tais cogitações, que adivinhava inúteis. A vida ensinara-o a ser prático. Bem sabia que com sonhos e lucubrações não ganharia o seu salário. Por isso se atirava ao trabalho.
– O’ia o Correio da Manhã! O Correeeeio! E assim ia vivendo…

Érico Veríssimo



Os Devaneios do General


Publicado em: - ÚLTIMOS CONTOS. Marcado: Séc. XX, Veríssimo.

Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.
O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.

O sol! As poças d’água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.

O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras… E recordações… Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.

O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.

O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.

Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.

Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia…

Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu… Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político… A oposição comia fogo com ele.

O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na “Voz de Jacarecanga” um artigo desaforado… Não trazia assinatura. Dizia assim: “A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada”. Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou “Patife! Canalha!” Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.

— Sente-se, canalha!

O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.

— Abra a boca! — ordenou.

Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.

— Come! — gritou.

Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.

— Coma! — sibilou o general.

Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.

— Coma, pústula!

E o homem comeu.

Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.

— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.

Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.

No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses “banheiros” que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.

O general remergulha no devaneio.

93… Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!

Morte… O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite… Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo… se houver outro mundo.

Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas… Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os “maragatos”. Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: “Inimigo não se poupa. Ferro neles!”

Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes…) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar… Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: “Inimigo não se poupa”.

O general agora recorda… Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.

Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:

— Petronilho!

A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.

— Petronilho! Negro safado! Petronilho!

Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?

— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?

— Está lá fora, vovô.

— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.

— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?

— Quero um copo d’água. Estou com sede.

— Por que não toma suco de laranja?

— Água, eu disse.

A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada… Chiquinho… Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923…

Um dia ele perguntou ao menino:

— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?

— Não. Eu quero ser doutor como o papai.

— Canalhinha! Patifinho!

Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.

— Eu disse água! — sibila o general.

O mulato sacode os ombros.

— Mas eu digo suco de laranja.

— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!

Petronilho responde sereno:

— Não vou, general de bobagem…

O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.

— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!

— Suco de laranja — cantarola o mulato.

— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!

Petronilho sorri:

— Suco de laranja, seu sargento!

Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.

O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.

Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão… Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia…

Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”. Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo… Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias… O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: “Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar”.

E recitando coisas esquisitas. “V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido”. Outras vezes olhava para o busto e berrava: “Inimigo não se poupa. Ferro neles”.

Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.

O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu… Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.

Fecha os olhos e recorda a glória antiga.

Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações…

Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último “homem” da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem… Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!

E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.

De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:

— Vovô! Vovô!

Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.

— A lagartixa, vovozinho…

O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:

— Degolei a lagartixa, vovô!

No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:

— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!

E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

Érico Veríssimo
Extraído do livro Entrevero, L&PM Editores – Porto Alegre (RS), 1984


As Mãos de Meu Filho


Publicado em: - ÚLTIMOS CONTOS. Marcado: Séc. XX, Veríssimo.


Todos aqueles homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros.
Beethoven.

Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado.

Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.

Adágio. O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda.

Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol… A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma história diferente.

Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor. O pianista está agora voltado para a platéia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos.

Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.

Suggestion Diabolique.

D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos.

Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.

Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho… Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho!

D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo.

D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos… Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos…

De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado… Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. “Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?” Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. “Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!” Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava apara a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia…

De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde… Gilberto faz curvaturas para o público, sorri, alisa os cabelos. (“Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito.)

A escuridão torna a submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros.
Navarra.

Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado.

Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo…

— Inocêncio, quando é que tu crias juízo?

O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocêncio fez uma proposta:

— Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras…

— Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões?

— Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita.

Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou… No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que conseguira cobrar.

Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora… E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam… Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos… o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada Militar…

De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: “Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!”

A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.

No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu… Mas não tem direito de se queixar… O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinqüenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinqüenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista.

Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranqüilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam… No fim de contas ele não era nenhum santo.

Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la… adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos… É capaz até de ficar por lá… esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim… E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.

Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais alegre.

No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura:

— Margarida…

A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada.

— Chit!

Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugenta-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.

Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:

— Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!

Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.

No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda:

— Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe:

— Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite… Tudo que sou, devo a ela.

— Não diga isso, Betinho!

D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam.

Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.

Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores paradas… Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado… Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias…

O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise.

— Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa. O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando.

— Linda mesmo.

Pausa curta.

— Não vê que sou o pai do moço do concerto…

— Pai? Do pianista?

O porteiro pára, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz:

— O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.

Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.

— Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres… Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia… o Betinho tinha seis meses… umas mãozinhas assim deste tamanho… nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas… Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis… Não podia ser o artista que é.

Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinqüenta mil-réis e mete-a na mão do mulato.

— Para tomar um traguinho — cochicha.

E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.

Érico Veríssimo
Extraído do livro Contos, Editora Globo — Rio de Janeiro, 1983










Um comentário:

  1. No Conto do "Chico" - Que tipo de linguagem o ator utiliza para descrever os pais de Chico? Qual é o posicionamento de Chico sobre a contradição apresentada pela vida?

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