domingo, 3 de julho de 2011

Versos, sons e ritmos


      O café fumegava no parapeito da sacada. O tempo voava lá fora. Hoje, não queria saber do relógio. Se guiaria de dia pelo sol e de noite pela lua. Sem pressa. Sem hora marcada. Hoje é o dia de observar bem de longe. De preferência sem ser observada.

       Mariana passa minutos, horas, dias a fio assim contemplando. Analisa crianças, jovens, adultos, velhos. Menino e menina. Homem e mulher. Tudo e todos mesmo. Nada escapa do seu olhar investigativo. Passa a maior parte do seu tempo a observar o andar, o olhar, os gestos, as cores, o estilo e as atitudes das pessoas. Gosta, sobretudo, de dar sentido a todas as suas percepções e sensações. Essa é a Mari. Como é chamada carinhosamente pelos mais íntimos.

       Mariana se ajeita na poltrona. Procura uma posição confortável. Em seguida, se inclina e fica a fitar o movimento intenso de carros e pedestres. Indo e vindo. Sempre. Num movimento incessante. Pessoas de gravata, de uniforme, de chinelo, muita gente passando de um lado para o outro. De todas as idades. Uns com um passo mais apressado, outros nem tanto.

       O sinal do semáforo amarelo, vermelho, verde. Atenção, pare, siga. O ritmo não pode parar nunca. Os motoristas seguem os seus destinos. Uns dobram a direita, outros a esquerda. Outros ficam presos no congestionamento e depois somem do alcance de seus olhos. É o caos do trânsito.

       A escola dá o sinal. Será o intervalo ou a saída? Depois de alguns minutos concluí que é a saída. Os estudantes saem dispersos. Aos poucos vão surgindo os grupos em muitos tons. Azul, verde e violeta. Amarelo, laranja e vermelho. Além de um festival de pink, verde-limão e laranja-néon. As cores desta geração. Não da sua. Mari faz um esforço para lembrar as cores de sua época de estudante. Por fim, conclui que suas preferidas sempre foram as cores primarias. As cores puras. Sem misturas.

       Os alunos parecem desorientados, perdidos, confusos com tantas informações relevantes. Sim, todas são importantes. Todas serão cobradas. Delas dependem para decidirem os seus futuros. Implacavelmente. Deste jeito. Sem dó e nem piedade. Que vençam os mais fortes ou talvez os mais esforçados. Tudo é uma questão de vontade. Acho que sim. Pelo menos, com ela foi assim.

       Mudança de perspectiva. Os cheiros se confundem no ar. São compostos de várias substâncias. Vários temperos que se misturam. Cebola, alho, alecrim, manjerona e cheiro verde. E pimenta muita pimenta. De todos os tipos. A vida precisa de pimenta. O poema precisa de pimenta. O conto precisa de pimenta. O romance precisa mais ainda de pimenta. As pessoas precisam de pimenta. Até os pratos precisam desse condimento picante. Em especial, da pimenta-malagueta. Tudo é uma questão de paladar ou de estômago.

       Esse é o momento de relaxar e desestressar. Recarregar as energias para depois continuar seguindo a marcha da banda. Ela não para. Apenas dá tréguas. Aproveitem essas raras ocasiões. Depois de um certo tempo a banda segue pedindo passagem. Contando com a sua participação. Peguem os seus instrumentos e façam muito barulho. Precisamos de flashes. Destaque. Notoriedade. Todos sem exceção. Concordo que uns precisam de mais, enquanto outros de bem menos. Precisam de menos burburinhos e mais paz.

       O sol segue o seu caminho em conformidade com o seu tempo. Desta forma vai cumprindo a sua tarefa diária. Depois de alguns dias de folga. Verdade. O sol, às vezes, também resolve reservar alguns momentos para a introspecção. Fica de longe, escondidinho, nublando os nossos dias. Contribuindo para os dias de melancolia. Tão essenciais. Tão produtivos em termos de poesia. Depois desse retiro, o sol volta a brilhar mais forte e brilhante. Me identifico com o sol.

       O café fumega outra vez. Não no parapeito da sacada de Mariana. O aroma vem escapando fugidio pelo ar. Entra pelas minhas narinas e aos poucos toma todo o meu ser. O café de sempre. O café com leite. O café preto. O café da inspiração dos poetas. O café que une culturas. O café que anuncia o lanche da tarde. O nosso café de cada dia. Da manhã e da tarde. De qualquer horário. Basta sentir vontade.

       Os sinos tocam chamando os fiéis. Mari retorna de sobressalto. Os pensamentos estavam longe. O coração acelera em mil batidas. Estava, realmente, dispersa. O sinos chamam a sua atenção de uma maneira brusca. O sacristão bate o badalo insistentemente. Quer a nossa atenção. Seguem as badaladas cada vez mais fortes. Eis que surgem os primeiros fiéis em busca de algo que foge do alcance de Mari. Tenta se aproximar mais, mas não consegue fazer a leitura dos seus lábios. Nem ler os seus pensamentos. É o mistério da fé. A fé que toca a roda da vida. Que faz o mundo girar. Que contribui para o equilíbrio da mente humana. Cada um com a sua.


       O sol se põe avermelhado no horizonte. É o fechamento do dia e o começo da noite. As primeiras luzes surgem ofuscadas pelo clarão da lua. O movimento retorna com força total e, lentamente, vai diminuindo para dar espaço para um eco vazio. Uma noite sem estrelas. Com um céu infinitamente azul marinho. Frio e repito: vazio. Mariana continua com o mesmo olhar atento e ao mesmo tempo fugaz. O mesmo olhar de raio x. Com a mesma sensibilidade aguçada.

       Luzes vibram em vários pontos da cidade. A menina se esforça, mas não consegue mais identificá-las. O sono tenta confundir sua visão. Fecha os olhos devagar . Tudo o que consegue ver são pontos de luz. Multicoloridos. Parecem uma pintura impressionista. Sim, é esse mesmo o nome do movimento que usou os efeitos da luz e da cor. Ela continua lutando contra o sono. O sol se foi e levou com ele as suas energias. Cansa da luta e se entrega. A escuridão invade-a. Amanhã, a vida começa outra vez com seus versos, sons e ritmos. E Mariana passará de expectadora para o papel de personagem.

Ana Paula Moraes

Um comentário:

  1. Versos, sons e ritmos nos mostra entre outras coisas,momentos e situações que nos passam despercebidos no ritmo frenético do dia a dia, cabe a nós desacelerarmos um pouco e olhar de uma outra maneira, apartir daí o dia será diferente.
    Linda poesia Ana !
    Deivisson

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